
Fim do reinado de 18 anos de Joseph Blatter na Fifa, início da era de Gianni Infantino. A passagem de bastão é de suíço para suíço, mais precisamente de vizinho para vizinho, já que os dois são da mesma região, do cantão Valais - o mais pobre da Suíça. O velho presidente não saiu bem de cena, renunciou ao cargo pelos escândalos e prisões de vários cartolas do futebol mundial. Em seu lugar, entrou o sorridente e carismático Infantino, filho de dois emigrantes italianos. Casado com uma libanesa, pai de quatro garotas e secretário-geral da Uefa desde 2009, o advogado poliglota de 45 anos escalou posições e alcançou o cargo mais alto na administração do futebol mundial no último dia 25, mas a história de vida do Gianni – como é tratado pelos amigos – não é tão diferente daquela de Blatter.
De famílias pobres, os dois perderam o pai cedo e trabalharam duro para estudarem em boas universidades. Também os une o lugar onde cresceram, a facilidade para as línguas, a diplomacia e a capacidade para construir relações sólidas. Gianni não faz o tipo político tradicional, defendem os seus familiares em Brig. Foi, no entanto, uma campanha política que levou o suíço-italiano, em viagem pelo mundo inteiro, a conquistar votos suficientes para derrotar o favorito Xeque Salman, para muitos o “candidato” de Blatter.
- Infantino é claramente um intruso no meio. É curioso que a história dele seja parecida com a de Blatter, mas acho que o percurso deles na Fifa vai ser bem diferente, porque o Blatter já trabalhava na Fifa muitos anos antes de se tornar presidente, em 1998. Era amigo de Havelange e já fazia parte da instituição. Infantino não tinha tanta projeção mundial, porque sempre esteve na sombra do Platini na Uefa, a sua posição não afetava os “jogos de poder” do futebol mundial. Agora, as pessoas esperam muito dele, esperam que ele possa ter uma administração positiva, limpa e que traga estabilidade - afirmou o jornalista britânico da Associated Press (AP), Rob Harris.
CARECA AOS 20
A história do pequeno Gianni, ainda de cabelos ondulados, começou a cerca de 40 quilômetros da fronteira com a Itália. No meio dos Alpes suíços fica a pacata e fria cidade de Brig. Essa foi a casa do novo presidente da Fifa até aos 20 anos, idade em que o garoto, já crescido e quase sem cabelos, foi estudar direito para a Universidade de Friburgo. Depois, passou por Neuchâtel, onde se especializou em direito esportivo e, desde 2000, se estabeleceu em Nyon, lar da Uefa.
Agora, a sua nova casa é Zurique, onde fica a sede da Fifa, mas as origens e a família continuam nas montanhas de Brig. Pelo menos, uma vez por mês, Gianni regressa à casa para visitar a mãe de 81 anos, que vive sozinha há 13, desde que o pai do novo homem forte do futebol faleceu por problemas cardíacos. Um dia depois dessa tarde fatídica, nasceram as gêmeas, suas primeiras duas filhas, fruto do casamento com a libanesa Lina Al-Achkar. As filhas mais novas têm 11 e cinco anos. As duas irmãs de Gianni também moram em Brig, uma é professora, outra trabalha na SBB, empresa que gere os trens suíços. A professora, Daniela, conversou com a nossa reportagem por telefone e mensagem, mas preferiu não dar entrevista a pedido do irmão.
Desde que foi eleito, o suíço-italiano deu ordens à sua família e aos amigos mais próximos para não falarem com a imprensa. Só que Brig não é assim tão grande, aliás é bem pequena e quase todos o conhecem. Num cabeleireiro do centro, encontramos o primo Daniel. A mãe, senhora Concetta, também italiana, é irmã do pai do presidente da Fifa. Os dois emigraram para a cidade de Brig nos anos 60 em busca de melhores condições de trabalho. Durante o papo, Daniel cortou o cabelo de, pelo menos, três clientes, enquanto a sua mãe ajudava nas pinturas.
- Eu e o meu primo ficamos carecas pouco depois dos 20 anos. A partir daí, a gente começou logo a raspar o cabelo todo. É assim, não há nada fazer. Genética é genética - brincou Daniel, que tal como o primo, não nem um fio de cabelo.
TORCEDOR DA ITÁLIA
Os dois primos cresceram juntos como dois irmãos de sangue. O grupo de amigos era composto por suíços, filhos de italianos, tal como eles. Numa cidade de montanha de mentalidade fechada, não era fácil para os italianos e portugueses que chegaram nos anos 50 se integrarem com os suíços locais de cultura alemã. Os pais de Gianni e Daniel tiveram dificuldade para aprender o alemão e em casa só falavam italiano. Os filhos aprenderam o idioma local na escola, mas nos tempos livres, voltavam para o bairro dos italianos.
- Os nossos amigos eram todos italianos, os de segunda geração como a gente. Sempre brincávamos com italianos, jogávamos futebol com os italianos, mas entre nós falávamos em alemão. Aqui na escola, a língua oficial é alemão e também aprendemos o francês. Em casa, era tudo em italiano - recorda o cabeleireiro.
Daniel é filho de uma italiana e um suíço, já Infantino é filho de dois italianos. O pai é da Calábria, uma das regiões mais pobres de Itália, e a mãe do norte do país, perto da cidade de Brescia.
- Eu me sinto metade metade, mas o Gianni é italiano. Completamente. Ele torce pela seleção italiana, é filho de dois italianos e se sente assim.
A Azzurra ganhou um torcedor de peso para a próxima Copa do Mundo, mas nada que possa beneficiar os italianos no papel, garante Daniel. Em Brig, ninguém aceita comparações entre o novo presidente da Fifa e os vários dirigentes envolvidos em escândalos de corrupção no último ano.
- Não tem nada a ver com o Gianni. A nossa família não é assim. Corrupção não é com ele. É um menino do bem - defendeu a tia Concetta.
No entanto, para o jornalista Samuel Burgener, do jornal “Neue Zurcher Zeitung”, corrupção não só existe na Suíça, como é uma realidade comum do cantão Valais, casa e Blatter e Infantino.
- Sei que ele era sempre o melhor aluno da sua classe na escola. É muito inteligente. Não é fácil para quem é daqui desse cantão de montanha, com pessoas quadradas, construir uma carreira sólida. Você tem duas opções: ou você pertence ao sistema político que governa aqui, que é muito conservador e aí você e seus filhos vão ter sempre trabalho e carreira garantidos, ou você é realmente uma pessoa forte, um lutador. Blatter e Gianni são parecidos nisso, eles são muito inteligentes e construíram suas carreiras saindo daqui. Vamos ver como será o percurso do Gianni, porque a história deles é muito semelhante - explica o jornalista local.
SONHO DE SER JOGADOR
Infantino, tal como Blatter, fala várias línguas e decidiu se dedicar à carreira do direito esportivo, já que o sonho de jogar futebol não deu frutos. O presidente da Fifa domina o inglês, alemão, italiano, francês, espanhol e tem também conhecimentos de árabe e português. Mas antes de se mudar para Friburgo, Gianni Infantino teve a sua primeira experiência na administração esportiva ainda em Brig. Com a bola nos pés, ele não era um grande craque. Um dia, recordam alguns amigos, na cobrança de um pênalti, ele chutou a grama ao invés da bola. Também tem no currículo uma ruptura dos ligamentos do joelho, enquanto corria sozinho. Atuava pelo meio-campo, tinha disposição, mas nenhuma técnica. Fora das quatro linhas já dava passos de gênio.
Com o primo Daniel e os amigos italianos, fazia parte de uma equipe 100% azzurra, o FC Folgore, que atuava apenas na categoria de futebol amador na Suíça. Mas Infantino conseguiu convencer o FC Brig, principal clube da cidade, a integrar o time dos italianos na sua estrutura para poderem competir. Inicialmente, a prefeitura estava reticente, mas o jovem convenceu a todos, prometendo que sua mãe se ocuparia de cuidar dos uniformes e que ele se encarregaria do contato com novos jogadores italianos para o clube.

Assim, o FC Folgore – que já não existe mais – passou a ser o terceiro time do FC Brig e Gianni e os amigos puderam atuar na quinta divisão suíça. O meia era jogador, dirigente, empresário, roupeiro, fazia tudo. Para buscar novos talentos, passou a viajar regularmente a Domodossola, a cidade italiana mais perto da fronteira, e convenceu alguns compatriotas a jogarem na Suíça. Infantino também atuou algum tempo no time principal do FC Brig, mas sem sucesso.
- Ele era o jogador, presidente, manager, agente, tratava da transferência de jogadores. Ia para Itália ver alguns jovens de talento, os trazia para cá, inscrevia os meninos, organizava torneios. Ele era o número 1 nessa tarefa e fazia porque gostava. Ele nunca ganhou dinheiro no FC Brig - recorda o atual presidente do clube, Rinaldo Arnold, que conhece Gianni desde esses tempos.

Outro colaborador do clube, que não quis-se identificar, recordou que já nessa época, com apenas 18, 19 anos, Infantino, lucrava cerca de 400, 500 francos suíços (R$ 1,8) com os trabalhos para o clube, muito mais do que qualquer outro garoto que jogava ali.
LIMPADOR DE TREM
Esses não foram os únicos trabalhos que fez em Brig. Infantino também ajudava o pai a limpar os trens suíços durante o verão. O jovem aproveitava para fazer as viagens mais longas para ganhar mais dinheiro. Com o pai, embarcava nos trens que ligavam as cidades suíças às capitais europeias e cuidava de uma das carruagens: levava café da manhã para os passageiros, jornais, limpava e trocava as roupas da cama.
Nos tempos livres, também ajudava a mãe no trabalho no quiosque da estação de Brig que agora já não existe. Nos estudos, era sempre o melhor, estava muito atento e concentrado. Mas o futebol era a sua grande paixão e os melhores finais de semana eram aqueles em que viajava com o pai até Milão - cerca de 180 quilômetros de Brig – para assistir às partidas do Internazionale no San Siro.
- Sou um grande torcedor de futebol como tantos que existem no mundo. Eu sei o que é ser torcedor e viajar quilômetros para ver o seu time do coração. Eu fiz isso muitas vezes pelo Inter. Já fiz viagens de carro, trem, avião, para seguir o meu time - revelou o novo presidente em entrevista ao site da Fifa nesta semana.

RELAÇÃO COM PLATINI
Em 2000, Gianni Infantino entrou para a estrutura da Uefa, se ocupou durante vários anos de questões legais e em 2009 foi promovido secretário-geral da entidade. Era o braço direito de Platini, embora os dois tenham percursos e carreiras bem diferentes. As semelhanças que existem são com Blatter e não com o francês, um ex-jogador.
Ser presidente da Fifa não fazia parte dos planos do suíço-italiano. A ideia era que o amigo Platini vencesse as eleições na Fifa e Infantino tomasse o seu lugar na Uefa. Os planos, no entanto, foram alterados com a suspensão do francês de todas as atividades ligadas ao futebol por seis anos, devido a uma transferência bancária suspeita que recebeu de Blatter. Infantino deu um passo à frente, mas Platini não gostou tanto da sua atitude. O primo Daniel confessa que os dois mantêm a amizade, mas estão mais afastados desde então.
Para Rob Harris, Platini pode sentir uma traição, porque o suíço-italiano agora ocupa o lugar que em condições normais seria seu. Na visão do jornalista britânico, Infantino também se afastou da campanha e imagem de marca de Platini e está tentando impor o seu próprio estilo.
- Eles sempre foram muito próximos, mas com funções diferentes. O Infantino foi um dos responsáveis pelo sucesso e estabilidade da Uefa nos últimos anos, pela implementação do programa do fair-play financeiro nos clubes e pela estabilidade econômica da instituição. Só que ele é mais aberto à tecnologia na Europa do que era o Platini. Vai marcar as suas diferenças e o Platini pode sentir um pouco que aquele cara está no lugar que seria para ele.

A Uefa teve um papel fundamental na vitória do suíço, porque há muitos anos que um candidato apoiado pela Europa não vencia na Fifa. Blatter e Havelange não eram próximos da instituição europeia, com Infantino o cenário foi diferente. No dia 25 de fevereiro, os dirigentes europeus estiveram sempre ao seu lado e o ex-secretário-geral fez questão de manter a união, dormindo inclusive no mesmo hotel onde hospedavam os europeus, com quem fez todas as refeições, abrindo mão de uma hospedagem de luxo no famoso Bar au Lac.
ORGULHO DA FAMÍLIA
Os amigos e a família também estiveram em Zurique na passada sexta-feira. O suíço-italiano não era favorito, mas acreditava muito na vitória, de tal forma, que seus familiares prepararam até camisetas e cachecóis com a frase “We are molto stolz” (escrita em inglês, italiano e alemão), que significa: “Nós estamos muito orgulhosos”. A reportagem teve acesso às fotografias das comemorações e o primo revelou mais detalhes da festa.
- Foi um dia longo, estivemos todos reunidos numa sala dentro do pavilhão onde se realizou o congresso, mas acompanhávamos tudo pela televisão. No final, o Gianni veio lá, ele estava muito emocionado porque recordou o pai. Foi muito bonito, ficamos lá ainda uma hora com ele, antes da coletiva de imprensa. Depois jantámos todos juntos com o pessoal da Uefa que também estava com ele e fizemos uma bonita festa - revela Daniel.

O primo disse não saber ainda o salário que o espera na Fifa, mas em Brig comentam que será algo entre os “três e quatro milhões de euros por ano”. Nada que faça com os familiares considerem sequer deixar os seus respectivos empregos.
- Não sei como é a mentalidade em outros países, mas aqui ninguém vai deixar de trabalhar para viver às custas do Gianni. Ele vai ter um bom salário, o valor será público daqui a alguns dias. Mas as suas irmãs também têm bons trabalhos, vão seguir a carreira delas. Eu me dediquei ao salão de beleza, vou continuar com o meu cabeleireiro e continuamos todos unidos. Com certeza, que ele vai ajudar a mãe, mas a “mamma” é outra coisa. Se a gente vai jantar, e ele quer pegar tudo bem. Vamos para a algum lado e ele se oferece para pagar um hotel, o restaurante, tudo bem. Mas ninguém vai viver do salário mensal dele, isso não - garantiu o primo.
Por volta das 16h30, em Brig, o dia vai embora, o céu já escuro, fica totalmente preto, e o comércio local encerra as portas. No inverno, a neve é um cenário quase diário. No verão, as elevadas temperaturas não são agradáveis para muitos dos moradores que fogem da região. Em Visp, cidade de Blatter, mesmo do lado, o cenário é idêntico. O único centro comercial fica aberto apenas até às 19h, e o lugar mais movimentado é a estação de trens que conecta a cidade com as restantes regiões da Suíça.
Blatter ainda é mais famoso do que o vizinho ilustre da região. No restaurante do cunhado, todos conhecem o ex-presidente da Fifa, nem todos sabem quem é o jovem presidente da Fifa de origem italiana. Pelas ruas, a mesma coisa.
- Aqui em Valais, o fato do presidente da Fifa ser desta região ou ser brasileiro é exatamente igual para os moradores. Ninguém quer nem saber. Quando eles vêm aqui, poucos os reconhecem - disse o jornalista Samuele Burgener.
Blatter e Infantino agora vivem os dois em Zurique, mas foi em Visp que se encontraram no mês de dezembro, antes do Natal. Blatter contou que o mais jovem lhe fez uma visita. O primo de Infantino, Daniel, diz que foi um mero encontro casual. O testemunho passou de mãos, mas continua no mesmo lugar.